Pesquisar neste blogue

terça-feira, 24 de março de 2020

Viver

Espero uma onda.
Qualquer onda.
Uma onda que me recolha
Da beira-mar, onde me ergo,
E me envolva.
Inesperadamente, de súbito.
Como um relâmpago.
E, no seu âmago, aprenda
A língua das sereias e,
Instantaneamente,
Seja outro.
Outro, capaz ser poético,
Habitante das profundezas marinhas.

Aguardo, à beira-mar,
O Sol-nascente da poesia,
A confluência de todas as uniões.
E, não adejando quer a bombordo quer a estibordo,
Enlouquecer levemente
No voo planado de uma gaivota,
No balouçar-berço do mar calmo.
Na fantasia inútil
Das solitárias noites estreladas.

Finco firmemente os pés nus na areia molhada,
E os meus pés são raízes para o mundo,
Uma razão e um objectivo de ser.
Ser afirmativo, viril e consciente calcador da terra nua.

Concentro-me no meu calcar da areia molhada,
Na minha posição bípede e erecta
De ser humano vivente.
Só os vivos pisam a terra com intenção.
Aos mortos apenas resta onerarem a terra com o seu peso.
Também apenas aos vivos é permitido ver a brisa que passa,
O cheiro dos montes.

Apenas os vivos vivem a noite,
Princípio e fim último da aventura humana.

Os mortos não vivem a noite,
O céu estrelado, a vertigem dos corpos celestes,
O grito da distância imensa.
Sequer o suplício da vida vivida nas profundezas infernais,
Sequer o prazer da ecclesia, apanágio dos viventes.

Aos mortos apenas é permitida a lenta putrefacção.

Além desta, aos vivos é também permitida a aventura,
O braço que empunha a espada erguida,
O erro e a morte.
Aos mortos não é permitido morrer.
Tal é apanágio dos vivos e apenas destes,
Como crescer e minguar, numa selenita imitação.
Consumir-se em explosões de espanto,
Tal qual as estrelas.

Só aos vivos é permitido permitir e interditar,
Louvar e punir,
Odiar.
Amar.
Pensar.
Viver.