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quinta-feira, 30 de maio de 2019

Parturiente


Estava a minha caneta, fecunda,
A destilar memórias de tinta,
Tal que resolvi escrever-te
Sobre a reserva da memória,
Nestas simples linhas,
Em que a clareza da página em branco
Se torna, necessariamente,
No gesto do teu corpo
Ao dares à luz uma nova vida.
Mulher-Mãe.
Perpétuo devir.
Sim. E sim novamente.
E nesse transcorrer do tempo,
Na queda da areia pela ampulheta,
Mede teu corpo a imensidão
Dos espaços virgens,
De um novo recomeço,
De uma nova promessa,
Renovada promessa
De um caminho silencioso.
Do caminho sempre por trilhar.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Recomeçando

Recomeçando

Do puro perfil da tua face
Que, tresloucado, recusei,
Tento agora, sem ânsias,
Do solo aos meus estilhaços dar sentido.
Sentido possível, da tua sentida ausência,
Parte partida da impossibilidade de ti
Para a outra face do irrecusável nós
Em que agora, sem a dourada face como companhia,
Do plúmbeo zénite tento insatisfeita alegria.

Ana Bela

Ana,
Bela a graça tua,
Bela Ana trauteia o meu coração,
Canções e festões de rua,
Que se aconchegam,
Aninhados,
Na palma da minha mão.
Pretérita plangente alma,
Acolhe, remoçada,
Em esperançosa calma,
Esta luz solar,
De Amor entretecida,
E por Afrodite e Eros abençoada.

O Parto


Sento-me à mesa, olho-me através da lupa do tempo que já passou da minha vida e vejo que:

O cimento vegetal
Das plantas vagas, Jogam jogos de doces,
Mendicantes de espírito e vida,
Quebrados pelo eterno refluxo
Desse tapete vivo
Que é o Mar Oceano.
Tapete de secretos compassos,
Que apenas Titãs e Titânides conseguem decifrar,
E cuja sapiência se esforçam
Dela o Homem instruir.

                Em vão? Nesta questão me detenho, tal como em todas as questões que alguma vez interceptaram a minha vida.
                Tudo o resto é chumbo, destinado a afundar-se nas profundezas da memória.
                E o coração? A metade viva, que ensina a fidelidade a si e, porque não o dizer, canta, compassadamente, a canção do nosso amor!!!

                E o corpo?
                Esse metrónomo da concupiscência,
Instrumento da descoberta erótica,
Do Outro e da Lei.
Lugar de recreação sensível,
E paragem do comboio do êxtase.


E, agh! Raios! E a fúria!!!

A Fúria.
A insanidade.
O bivaque. O bitoque.
Vivamos assim. Assim, como.
Como assim.
Pequenos e dispersos.

Chaque de nous un Cosmos qui danse autour le feu, jusqu’à devenir, nous mêmes, une explosion mouvante de haine et de rage et, ainsi, devenir. Devenir. Devenir une lumière, un phare. De toute façon la propre flame.
Comme les yeux de un tomber de jour tremblotant.
Et, ah, comme me fairait plaisir de te refuser, mon coeur. Et vivre la vie des poètes maudites, les gros vouleurs des pièrres du temple de Kali, la renverseuse mère de la ruine des peuples.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Humanos

Humanos

Dois velhos, cada qual ostentando, do lado esquerdo dos farrapos que vestem, uma cruz de guerra alemã, numa inscrita o número 63 e noutra 69, conversam, sentado na plataforma da gare da Estação de comboios de Austerlitz.

63 – Sabes 69! Depois de tudo isto tomei consciência que estou destinado às chamas do Inferno! Leste a parte d’A Divina Comédia passada no Inferno?

69 – Sim. Porquê?

63 – Pois eu não. Tenho tentado preparar-me para o pior, imaginando sem descanso cada detalhe da minha danação. Baseado em descobertas recentes de Neurofisiologia. Por exemplo, quando sofremos um corte sentimos dor. Com o passar dos minutos, a transmissão contínua dos impulsos nervosos, através de transmissão eléctrica, acaba por exaurir a capacidade das fibras nervosas transmitirem o sinal eléctrico, abrandando esta e tornando-se a dor mais ténue, daí a diminuição da dor. Chama-se habituação.

69 – E daí? O que tem isso que ver com o Inferno? – pergunta o 69 já enfastiado com a explicação.

63 – Daí? Daí que imagino o Inferno como a inexistência da habituação. Para sempre. Todo o ser, em permanente sofrimento, sem redenção, com a sempre renovada transmissão nervosa tal como ocorre na pior fase da dor, quando a sentimos.

69 – Isso é horrível! Um Inferno cientificamente certificado. Era só o que faltava – diz o 69 após olhar o outro de soslaio. – Por mim, se acreditasse em tal, imagino a vida post-mortem como a imersão numa névoa densa e cinzenta, sentindo permanentemente a presença inefável do Altíssimo. Mais propriamente a sua observação de todo o nosso ser, de tal modo a sentirmo-nos sempre acompanhados. Para todo o sempre.

63 – É uma imagem interessante. Algo apaziguadora. – diz, pesaroso, o 63, como quem, não tendo já energia para invejar, se limita a recolher-se na sua escuridão interior, em busca de refúgio para uma vida não vivida plenamente. – Mas a minha ideia não pára aqui.

69 – Não? Ainda há mais? Então vá, conta lá, se isso te satisfaz.

63 – Sim. Em tantos tempos quantas as fases que te vou contar, surgiram-me, do nada, desenvolvimentos desta minha concepção infernal.

69 – Infernal e também um pouco louca, não? – diz, trocista o 69.

63 – No primeiro tempo surgiu-me a ideia que, para evitar o fogo eterno, o melhor seria acabar com o Inferno. E como é que se acaba com o Inferno?

69 – Deixando de acreditar nessas coisas? – diz o 69 encolhendo os ombros.

63 – Fazendo as pazes entre Deus e o Diabo!! – diz o 63 com ar triunfante.

69 – Ai é? E como é que te propões levar a cabo tal façanha? Vais organizar um chá e convidar os dois?– diz, trocista.

63 – (sem ligar ao gozo do outro) O desenvolvimento a seguir surgiu-me uns dias depois. Apareceu-me de repente, como se tivesse forçado a entrada no meu cérebro, na forma de uma frase algo sibilina “as pessoas tendem a unir-se quando têm um inimigo comum”.

69 – Deixa-me adivinhar esse inimigo. Tu próprio.

63 – Não cheguei logo aí. Tudo ficou inicialmente por ali. Mas a minha cabeça prega-me partidas e, a determinada altura, a despeito da minha vontade, num dos muitos clarões que por vezes me assaltam, decidi escolher esse papel.

69 – Deixa que te diga uma coisa. As pessoas normalmente só se unem umas às outras, contra uma terceira, quando esta se apresenta mais forte que as outras duas separadamente. Aí unem-se e forjam alianças. De resto, tenho muita pena, mas não. Não te dou mais conselhos mas pareces-me ter uma visão muito limitada do mundo.

63 – Pois eu acho que não!! – diz o 63, agastado. – Eu tenho consciência de coisas muito grandes, coisa que tu não tens, por isso não compreendes o que te estou a dizer, estás num plano de existência muito inferior a mim. Não percebes nada do que é realmente importante. – diz, altivo, o 63.

69 – Desculpa se te apoquentei – disse o 69, vendo que o outro estava já algo transtornado e que não era possível uma conversa racional com ele. – Sejamos amigos outra vez e bebamos um pouco de schnapps. Tenho aqui uma garrafa quase vazia que uso apenas em ocasiões especiais, tal como esta, e em quantidades moderadas.

(O 69 dá a garrafa de schnapps ao outro, que bebe um pouco da bebida e a devolve, e, por sua vez, também aquele dá um pequeno gole da garrafa, inspeccionando-a de seguida, sorrindo por ainda chegar, apesar de pouco, o suficiente para mais algumas destas comemorações com o 63).

69 – Já te conheço de há muito, 63. Somos como irmãos. Eu tenho as minhas idiossincrasias, tu tens as tuas. Há muito que andamos juntos, correndo mundo. Lembras-te do pão com manteiga que o Franz, daquela padaria azul, em Francoforte-sobre-o-Meno, nos dava de madrugada, quando por ali andávamos e com ele íamos ter?

63 – Sim, lembro-me. Era delicioso. Quentinho e acabadinho de fazer. Como aquecia até a alma. Sabia tão bem!! – deixa cair uma lágrima, depois outra, limpando o nariz à manga dos andrajos que veste. – Gosto muito de ti 69. És um bom amigo. Sempre me ajudaste e me protegeste. Tenho uma dívida de gratidão para contigo.

69 – As dívidas não são para aqui chamadas. Entre amigos não há dívidas. Há camaradagem, celebração e, de quando em vez, schnapps para comemorar.

63 – Então, em nome da nossa amizade, venham de lá esses ossos.

69 – Vamos a isso.

(Abraçam-se fortemente e ambos se comovem, vertendo os dois algumas lágrimas de alegria por estarem na companhia um do outro).

FIM