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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Lancei em muitos mares

Lancei a minha garrafa
Em muitos mares.


Lancei a minha garrafa
em muitos mares.
Até, de cada lançamento,
Não restar, em mim,
Memória viva, em tempos dolentes,
Aqueles em que, gozando o ócio,
Mais nos pasmam, a cada esquina,
As mais agradáveis lembranças,
De sua pretérita existência.


Lancei a minha garrafa
Em muitos mares.


Lancei a minha garrafa
Em muitos mares,
Em busca da alma errante e só,
A quem a minha escrita
Não causasse equívocos,
E fizesse da minha mensagem,
No cume da mais alta montanha,
Um cadinho de palavras e gestos,
A um só tempo amorosos e perversos.
Teia, formosa teia,
Paciente e delicadamente tecida,
E de equívocos e certezas ornada,
Tal como a breve vida de todos os viventes,
Futuro e inevitável pó.


Lancei a minha garrafa
Em muitos mares.

sábado, 25 de agosto de 2018

Para ti, desconhecida

Numa barca o 'stige atravessando,
Pela timoneira de Caronte,
De ti, anelo de pura fronte,
Por medo ao largo fui passando.

Sem, por ora, de ti mais saber,
Vou, aqui no Hades de mortas almas,
Do aio do Tebano as calmas
Narrações do Ítaco conhecer.

Já, ao longe, a lira de Orfeu
O cão dos Infernos vai calmando,
Em busca da Eurídice sua,

Quando aquele desejo for o meu,
Dez mil liras em concerto tocando
Celebrarão já a vida nua.

                                                     à Lurdes

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Ode ao soldado

E, de repente, sem saberes como nem porquê,
Viste-te engrossar, como soldado,
O Exército d'Aqui,
Na sua guerra eterna contra o Outro.
Foste treinado e equipado,
A despeito de nada d'Ele conheceres,
Na crença, que te ensinaram
desde tenra idade, das más intenções
D'Esse mesmo contra ti.
Nasceste, brincaste, choraste, bateste,
Cresceste e, eis-te aqui,
Garboso soldado dos lados d'Aqui,
A quem os outros admiram e o Outro teme,
Tal como, decerto um dia saberás,
Ser o inverso também verdadeiro,
Quando te vêm passar, fardado e
Altivo portador de tudo que, geração após geração,
os Nossos têm acumulado desde sempre,
De conhecimento e moeda,
Riquezas interiores e exteriores,
Como decerto entenderás.
Mas vive agora.
Vive e aproveita tudo o que os Nossos têm,
para teu contentamento, a te oferecer.
Cresce em contentamento e em força,
Pois de tudo necessitarás
Quando defrontares o Outro.
E todas as recordações,
O mais aprazíveis e em abundância
Sejam, por e para graça dos que nos guiam e sempre guiaram.
Chegará, então, o dia
Em que serás levado para o confronto com o Outro,
E lá te encontrarás, crescendo ainda,
Mas, desta vez, se sobreviveres, em ódio e em amor,
Até esse paradoxo dilacerante, dentro de ti,
Te tornar um Homem, caso o resolvas,
Ou te levar à loucura, se tal não suceder.
Não te esqueças, finalmente, que, se te vires, no hausto da noite,
Em território do Outro,
Alvejado mortalmente, num ermo,
Sozinho e sem ajuda,
Sem teres,
No Alto ou em todos os que conheceste na tua vida,
Em quem te apoiar ou pedir ajuda, perdão ou consolo,
Que a tua morte não será em vão,
Pois, por muito curta que tenha sido,
Sempre marcaste a Vida com a tua presença,
Triste ou alegre, disponível ou ausente.
E, se ainda o puderes, e a dor não to impedir,
Olha o céu, as estrelas distantes e os planetas,
Próximos ou distantes e lembra-te disto:
Também eu engrossei as fileiras dos Nossos,
Na sua guerra eterna contra o Outro,
E após largos anos de luta,
Árdua de altos e baixos, vitórias e derrotas,
Que cicatrizes muitas e profundas me deixaram,
Apenas fiquei ciente da Imensidão
e do Silêncio, respostas à minha procura de
Quem me salvasse de mim próprio ou me guiasse,
Tendo apenas aprendido como a vida é frágil,
E nós apenas sombras desajeitadas,
Procurando a Imortalidade, uns,
Ou a Salvação e a Eternidade, outros.
Tenta lembrar-te, nesses últimos momentos,
Dos gestos de bondade que tiveste para outros,
E, se tal for o caso, a dignidade
Com que sempre te mantiveste altivo,
Corajosa e generosamente respeitador
Da dignidade do Outro,
Tal como da tua.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

poesis (ou, fazer algo, não importa o quê) - escritos antigos


O corpo-a-corpo do Amor

Mais uma vez, do princípio.
O corpo-a-corpo do amor
É composto por três partes:
O negócio, o alvitre, a fugacidade e, por fim, a morte.

No negócio fazem-se lances,
Apostas de sangue, saliva e sémen.
É a noite quente do amor.
A hora da ocultação dos sobejos
E a da exibição despudorada dos amplexos.
O negócio é uma flor delicada,
Um seio excitante entrevisto lascivamente entre dois bocejos.
É a noite quente do amor.

O altivo alvitre
É a maravilhosa sumptuosidade dos mercados, dos bazares e das feiras.
De tudo o que é conjunto e exala um odor a especiarias orientais.
É o gozo dos jantares à luz de velas nas açoteias de astros desconhecidos.

Na fugacidade trocam-se
Golpes de amor-próprio
Na franqueza do outro
Na precessão dos equinócios dos corpos
Em que cada vale resguardado
É sabiamente evitado por outra convulsão
Da ordem estabelecida.
Tal como numa revolução em que
Os indivíduos se abandonam
A escaladas de ofensas e golpes,
Quentes e desmesurados,
Como a lava escorrente
Dos vulcões em erupção, imparáveis e obscenos.

E a morte?
Não sei, nunca a vi.
Mas presumo que seja
O zero Kelvin da inexistência
A conjugação de inexistências
Para atingirem coisa nenhuma.
A ausência da ausência.




Isto não significa absolutamente nada

Hoje
O meu ontem decidiu
Voltar-se para o meu amanhã
Num gesto de
Ânsia,
Oculto, cego e impossível,
E nos altares de deuses incógnitos
Foram depositadas ofertas de pura dor.
Dor já sonhada nos livros luminosos de Marqueses e Condes.
Que hoje, como ontem, connosco amanhã gritarão:
- Puta que pariu todos os realejos cronométricos, esses objectos infernais de medir a desmesura da palavra Amo
Como, aliás, de toda a palavra.

E tu, estalajadeiro,
Não esqueças as medidas certas de absinto
Para a mesa dos que aguardam, há eras,
O comboio, sempre atrasado, da experiência sensível.
E que, entretanto, se afadigam,
E procuram
E perseveram
Em nada fazer.
Alheios aos esforços, infinitamente diabólicos,
De toda a persuasão e de todo o perdão,
Humanos ou divinos.






Curioso!

É curioso
Que me tenha recordado de ti,
Na madrugada,
Corrossel infantil,
Dos despojos do amanhã,
À medida que folheava
As páginas solarengas do livro dos impossíveis.
Necessito esquecer:
O pó,
O vazio,
A dor, e
A sagrada religião de que só tu és a imaginada celebrante.
Esquecer filosofias e sapos
E permanecer ainda no cais conceptual da tua beleza.
E ver partir, sem bilhete ou possibilidade de o comprar, o cacilheiro advento mágico do teu seio.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

As Ondas (escrito à beira m'água)

Ondas.
Ondas sem fim.

As Ondas são Titânides,
Muito amadas e dilectas filhas
De Filantropo, amigo dos Homens, e Tethys, prolífica e virtuosa dama.

Nascem, em noites de Lua plena,
No fundo mais profundo do largo Mar Oceano,
E vêm morrer à costa de todos os Continentes do Mundo,
Trazendo novas, alegres ou amargas,
Plenas de sageza e amor,
Das almas perdidas na vasta distância.

Se vires uma cala em ti o Verbo
Pois elas, silentes errantes do porvir,
Estão ali apenas para te lembrar e fazer compreender
O sentido último e amoral da Justiça do Cosmos.