DESENCONTROS
Parte I
Tu e Eu
Em mil visões levantinas
O meu varonil ofício exerço
Sem olvidar que limpar latrinas
É também mester que bem conheço
Se tens de te erguer dormindo ainda
Deixa que teu pé calque a terra
Arada pelo amor da manhã finda
Sob a lágrima que mundo soterra
Ergue tua palavra como mar de rosa
Afina e aguça o lápis da tua prosa
Reconstrói de Rhodes o imenso Colosso
E deixa o poema fazer-se puro e moço
Tece flocos de gelo ardente
Na Paris dos artistas luz e amantes
Bebe da vil e amarga aguardente
Até que tudo retorne ao que era dantes
Se precisão tiveres de um amante
Vozeia com tua dourada voz o meu nome
Até que todolo meu ser se alevante
E na Láctea Via só livre encontre teu renome
Companheiro teu também serei
Até que ser haver não hei
E sejas tu a chave-mestra
Do sistema métrico da pena alva e destra
Serei o altivo e orgulhoso mendigo
Do teu amor feminil sempre carente
E seja eu o anjo do mundo antigo
Em desgraça caído num mundo demente
Torno agora à casa que será ninho
Por herança do morgadio inexistente
E contigo conserte o dócil cadinho
De te amar total e tranquilamente
Dócil o cadinho de ternura tecido
Ditoso enlevo no vasilhame do amor vertido
Por mor do espanto de te ver mulher
E pera encanto de tudo o que vier
Amar-te sempre até morrer.
Retorno agora ao redil infernal
De ver alongar distância tua
No vigor ardente do calor estival
Como se nos apartassem Terra e Lua
Meu coração chora e fere-o a desdita
De não te ter inteira aqui e agora
Como ditosa seria a alegre hora
Em que a nossa carícia fosse bendita
Se minhas lágrimas te aprouverem
Do desfavor que de ti me fazes
Leva peço-te a tristeza que me trazes
Bem toda a angústia que me trouxerem
Que de tudo te livres onde aprouver
Do oiro e prata com que teu busto moldei
Que de humilde barro outro farei
Daquele grande amor que de ti restar
A minha perdição te é indiferente
Assevero-te no entanto, que gostarias
Na corrente do remanso dos dias
Veres-me a teu lado pleno e contente
Despeço-me agora amor de felífero odor
Continuarei ao longe acompanhando tua jornada
De holofotes patine e lantejoulas trajada
E para sempre ignorante do meu amor.
Parte II
O vazio da alma
E agora? E se agora, tresloucada, risse
Desperta do sono penumbra da inacção
Despida do ardor de qualquer intenção
Pelo olhar do hiperbóreo oculto visse
Compreenderias o que não posso dar?
Sentirias o quão sôfrego de amar
Vivo desde sempre sem empatia
A voz silente do luar do meio-dia?
E viverias como o sopro de um princípio
Um livro verde uma agenda e a fuga
Lentamente declinando os tempos como ofício
Como quem de mim a vida purga
Parte III
O pas-de-deux e o Horror
Hoje de todas as desesperanças o dia
Encontro-me a sós com as palavras
Promessas de amor desejo e alegria
No final difícil e atribulado da jornada
Qual desatino de meu ser antagónico
Predador de mim e humor sardónico
Empurra-me para a lembrança da tempestade
Que se avizinha solitária e desoladora beldade
De me ver sendo sem de mim existir
No quebranto da luz velada do desamor
E entretanto até à morte de subsistir
Isento de imposto por foça de ser menor
Neste testamento de fotografias enlaçadas
Do duro ofício de existir à beira-mágoa
Percorro o rio caudaloso de alta frágua
Do caminho percorrido sob vossas alçadas
Que se dane o enlevo e a fera felicidade
Esparçamente por mim encontrada nesta idade
Filha do desgosto e da amargura existente
Da clara consciência de estares sempre ausente
As palavras vão e vêm no amplexo do dia longo
Desta insana consciência de existir correndo
Caindo sobretudo e levando por certo este corgo
De uma vida infeliz passada obedecendo
Atiro a caneta para fora do meu alcance
Desejoso de nem mais uma linha escrever
Sabedor da adicção do permanente enlace
De sentido metaforano que implica o mester
Alma perdida no tormento da borrasca
Molhada até aos ossos da minha fundura
Desejoso da redenção do que de mim só casca
Do medo do futuro que imóvel perdura
Escrevo estas linhas como quem se mutila
Na dor da vida passada sem carinho
Olvidando o amor que permanente vacila
Do nada venho e para o nada caminho.
Parte IV
O ódio que se vai soltando
Quando tudo o que é raso e sem sentido
Nos faz ponderar sobre o significado da virtude
E todo o bem que a muito custo é vivido
Nos faz alcançar tudo o que é vã e fútil atitude
O ódio desprende-se lentamente do fundo da bandeira
Assim feio e desonesto cobarde e por isso vil
O nauseabundo odor a pútrida cegueira
Campo mar e céus preenche com seu ardil
Se a confusão dos símbolos é intenção
Se o derrube da liberdade se ergue impante
Tomando a baba vomitada do ódio como canção
Que fazer senão arremeter contra o flagrante
Apenas todas as palavras serão suficientes
Para fazer deste ódio carniceiro e celerado
Algo mais que um mero final acertado
E finalmente fazer da corja horrores ausentes
Por enquanto perdemos em época de baixas esperanças
Perdemos o norte perante o assalto dos fanáticos
Fanáticos que cônscios nada têm de lunáticos
Ímpios nos pretendem ferir com suas lanças
Resta apenas resistir homens de boa vontade
Ao arremesso das flechas com opróbrio lançadas
Contra a armadura que levantada nos invade
Da liberdade igualdade e fraternidade a nós dadas
Não desespereis no entanto com este desnível
Já outras lutas pelas eras corajosos travámos
Até que altivos sonhadores da Utopia transformámos
Derrotas certas na Vitória arrancada ao impossível
Parte V
Conjugações
É este rol de versos conjugados
Da fome de pão, de amizade, de amor
Que no balanço dos tempos passados
Dê início à recidiva da oculta dor
Anos bastos de orgulho vida e morte
Pespegados no caixão da mundana sorte
Em estranho mundo fundados entrem
E do cruel cativeiro livres se soltem
Qual criança em terra estranha caminho
Na absoluta desesperança de aqui não seres
E sentir ao largo o luto de aqui não estares
Nesta jornada ilustre em que pelejo sozinho
Vai agora e que te a esperança leve
De não me saber fecundo ou oculto
Terra chão que qual deusa me persegue
E que de troça e opróbrio me faça inculto
De luta e peleja bastante sabedor
Interior ignoto a que sempre regresso
Aumenta pois esta vida em ditosa dor
Por que minha vitória dos Anais seja sucesso
Digo sim e sim novamente a toda a derrota
E de punho erguido buscando a glória
Vou de batalha em batalha em ditoso recomeço
Que de meus feitos fique repleta a História
Até a morte última companheira sobrevir
Continuarei orgulhosamente cantando
Esta estória minha obra do porvir
E verseje a esmo com o que vida vá roubando
E embora viva de desnorte em desnorte
Pisando terra firme que o Sol alumia
Cantarei ufano a minha vitória um dia
No silêncio das eras e que os deuses conforte
Estando derrota e vitória já conjugadas
Dou por ora findas estas jornadas
De sémen suor e sangue entretecidas
De rasgo e perigo feitas vidas adormecidas
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