Os Velhos
Três Velhos, todos rondando pelo menos setenta provectas Primaveras, estão sentados na Praça Central do Cercadinho, egrégia povoação raiana, outrora próspera vila, mercê do contrabando transfronteiriço e a quem D. Fernando, cognominado de “O Formoso” ou “O Borgonhês” deu foral, ainda corria a Primeira Dinastia.
Mas isso foi há muito tempo, antes ainda de o próprio tempo começar para qualquer um dos três Velhos. Ainda antes da abertura das fronteiras, que muito prejudicou o Aníbal Roncado, um dos três, chamado familiarmente, por parentes e amigos, como o Marreco, sendo a razão desse nome conhecida apenas do próprio, já que o mesmo nunca essa razão contou a alguém.
O Marreco, todos os mais velhos do Cercadinho o sabem, foi contrabandista, de carga e gente, esta uma outra forma daquela que aqui para o Marreco, carga ou gente, era a mesma coisa. O que contava era a paga e como essa nunca faltou, conseguiu construir casa no Cercadinho, arranjou mulher e teve dois filhos, a Brígida e o Romão, que já não vê há anos. Desavenças, diz-se, que os Roncados são gente de maus fígados e o Marreco, mal os filhos cresceram e fizeram frente à mão de ferro com que governava a casa, foram mandados para casa de umas primas, instaladas na Foz, no Porto, para as servir. A partir daí nunca mais quis saber deles e a quem, desconhecedor da desavença, por ele lhes pergunta, responde:
-Morreram.
Assim, secamente, para atalhar conversa, que isto de recordar ingratos é coisa para gente lamecha. É noite de Verão sem Lua e o calor abrasa, vêm-se os buracos na pele de urso, que recobre o céu e tapa da vista humana o fogo celeste que se estende para lá dessa barreira.
Brites Seco, militar já reformado com a patente de coronel, a quem os outros dois ouvem com atenção e respeito, dado o seu porte aristocrático e a sua grande sabedoria, que os faz calar quando o mesmo de despega de seu mutismo e esclarece algum pormenor que os outros dois ouvem com atenção. Tem um filho, que raramente vê e a quem adora, da sua primeira e única mulher, falecida durante o parto.
O terceiro Velho é o Francisco Ferrim, antigo funcionário da CP, também já reformado que, segundo se conhece, nunca foi correspondido nos seus amores nem teve descendência.
Falam ao calhas sobre temas e títulos que dariam a um livro que escrevessem.
- Eu escrevia um livro chamado “O Nariz” – disse o Marreco, ao que o Brites Seco retorquiu. – Porquê?
- Porque imagino que os contrabandistas o tinham que ter apurado para cheirar os cabrões da Guarda Fiscal a léguas. – Responde o Marreco, acrescentando – Pelo menos os mais novos, que se mijavam de medo quando batiam as fronteiras durante a noite. – Remata com uma gargalhada.
- Bem, fique sabendo que já existe um livro com esse nome – corrige Brites Seco.
- Era o nariz era – diz Francisco Ferrim, remetendo-se ao silêncio, fitando o pelourinho no meio da Praça. – O nariz, a língua e tudo o resto. – diz, enigmático.
- Mas o amigo o que é que tem? Porque é que se pôs macambúzio? – Pergunta Brites Seco.
- Vou contar-vos uma história – diz o Francisco Ferrim. – Quando era novo, numa altura em que era marçano numa loja em Lisboa, que ardeu no grande fogo que destruiu o Chiado, apaixonei-me pela filha do dono.
Ainda hoje me lembro dela. Achava-a linda, apesar de ter o nariz adunco e um defeito na fala. Mas estava tão apaixonado que inventei explicações para esses pequenos defeitos. Imaginei que o nariz dela tinha sido obra de Deus, pois, ao criá-la, tinha o Altíssimo ficado tão apaixonado como eu, o que não ficava bem a um Deus monoteísta, austero e grave. A tal ponto que, lembrando-se dos tecelões de tapetes persas, que colocam propositadamente uma imperfeição em cada tapete, por crerem ser a perfeição uma qualidade exclusiva de Deus, este tinha colocado aquela na forma do nariz dela pois sem ela a mesma seria demasiado perfeita.
- És um conas – se calhar nem lhe disseste nada e andas a remoer isso aí dentro há anos – disse o Marreco.
- Um momento, caro amigo Aníbal, deixemos o Francisco falar sobre essa mágoa. Diz-se que alivia falar das nossas dores – disse Brites Seco. – Continue caro amigo Francisco.
- Não é verdade que não tenha feito nada. Mas já lá vou. Em relação à fala veio-me à cabeça a ideia que teria incarnado nela a alma da sacerdotiza dos homens e mulheres que se tinham lançado à empresa de contruir uma torre que chegasse ao Céu, a Torre de Babel. Como castigo, após confundir as línguas e inviabilizar a construção da Torre, teria Deus condenado todas aquelas em quem incarnasse o espírito da sacerdotiza a terem um defeito na fala.
Amo-te
Estou sentado defronte do abismo da folha em branco, esperando que algo surja e apenas me vem à cabeça a palavra Amo-te.
Tento afastá-la. Quem sabe que obras-primas poderia estar agora a escrever, se esta palavra não tivesse encontrado a corrente que leva até ao meu coração e não se tivesse aninhado, como um bebé recém-nascido, dentro de mim e teimasse em aqui permanecer.
Face a inquilino tão importuno e persistente decidi dar-lhe alguma atenção. Olho para ele, em pantufas, sentado numa poltrona e reparo que tem um ar velho e cansado. Parece um mendigo, com os seus sapatos, arrumados ao lado da poltrona, com ar de basto uso, suas calças rotas e o seu coçado casacão. Preto, neste caso. Faz-me pena vê-lo assim, sem ter algo para lhe oferecer que lhe aquecesse o coração, eu que também pouco possuo.
Chego-me a ele e cumprimento-o:
- Olá – digo eu, tentando parecer o mais caloroso possível, de modo a quebrar o gelo.
Ele, que, absorto, contempla o infinito, nem me responde.
- Olá, Amo-te, como é que vai isso?
Então, como se retornado do reino das névoas, imensamente escuro e opaco, vejo que repara em mim:
- Olá – diz ele – Tenho fome! Dás-me de comer?
- Infelizmente nada tenho para te dar que te alimente. Tenho apenas chá preto – digo eu. Foi tudo o que restou do vendaval dos últimos dias. Mas de bom grado te ofereço uma chávena de bom e quente chá preto. É o que se dá aos convalescentes, julgo.
- Pode ser – diz ele, com ar contrafeito – Se não há nada mais substancial terá então que ser chá preto.
- Óptimo – digo eu, enquanto espevito o fogo da lareira para ali aquecer a chaleira com água. – Vou utilizar um bule especial. Era da minha avó materna. Como tanto eu como a minha mãe somos filhos únicos calhou-me em herança. Tenho uma grande estima por ele. É feito de porcelana chinesa. Está na família há décadas.
- Hum! – murmura ele, não se mostrando grandemente interessado na história do meu bule.
Encho a chaleira com água e coloco-a na grelha da lareira, onde também costumo colocar as panelas e os tachos ao lume. Pergunto-lhe:
- Por onde andaste? Tens um ar cansado – digo eu, refreando-me de referir o seu ar de mendigo e as suas olheiras, fruto da fome e do cansaço.
– Andaste a correr mundo?
- Não. Fiquei sempre aqui por perto. Tenho andado escondido. Ando fugido dos Homens. – diz secamente.
- Mas porquê? Fizeram-te mal?
- Usam-me a despropósito e hipocritamente. Estou cansado de ser utilizado para manipular e enganar outros. Sei que sempre foi assim, mas a determinada altura fartei-me e escondi-me no bosque aqui perto. Tenho vivido do que almas bondosas me vão dando. Como agora – diz, esboçando um leve sorriso, sem mostrar os dentes.
- Se quiseres podes ficar, Amo-te. Amanhã vou às compras, hoje já está tudo fechado, e podemos comer os dois algo mais substancial que chá. – digo eu, ao mesmo tempo que se ouve o silvo da chaleira, sinal que a água já está pronta para o chá.
Pego na chaleira e verto água a ferver no bule, que previamente havia preparado com o chá.
- Agora é só esperar uns minutos, digo, contente, para o meu convidado.
Três Velhos, todos rondando pelo menos setenta provectas Primaveras, estão sentados na Praça Central do Cercadinho, egrégia povoação raiana, outrora próspera vila, mercê do contrabando transfronteiriço e a quem D. Fernando, cognominado de “O Formoso” ou “O Borgonhês” deu foral, ainda corria a Primeira Dinastia.
Mas isso foi há muito tempo, antes ainda de o próprio tempo começar para qualquer um dos três Velhos. Ainda antes da abertura das fronteiras, que muito prejudicou o Aníbal Roncado, um dos três, chamado familiarmente, por parentes e amigos, como o Marreco, sendo a razão desse nome conhecida apenas do próprio, já que o mesmo nunca essa razão contou a alguém.
O Marreco, todos os mais velhos do Cercadinho o sabem, foi contrabandista, de carga e gente, esta uma outra forma daquela que aqui para o Marreco, carga ou gente, era a mesma coisa. O que contava era a paga e como essa nunca faltou, conseguiu construir casa no Cercadinho, arranjou mulher e teve dois filhos, a Brígida e o Romão, que já não vê há anos. Desavenças, diz-se, que os Roncados são gente de maus fígados e o Marreco, mal os filhos cresceram e fizeram frente à mão de ferro com que governava a casa, foram mandados para casa de umas primas, instaladas na Foz, no Porto, para as servir. A partir daí nunca mais quis saber deles e a quem, desconhecedor da desavença, por ele lhes pergunta, responde:
-Morreram.
Assim, secamente, para atalhar conversa, que isto de recordar ingratos é coisa para gente lamecha. É noite de Verão sem Lua e o calor abrasa, vêm-se os buracos na pele de urso, que recobre o céu e tapa da vista humana o fogo celeste que se estende para lá dessa barreira.
Brites Seco, militar já reformado com a patente de coronel, a quem os outros dois ouvem com atenção e respeito, dado o seu porte aristocrático e a sua grande sabedoria, que os faz calar quando o mesmo de despega de seu mutismo e esclarece algum pormenor que os outros dois ouvem com atenção. Tem um filho, que raramente vê e a quem adora, da sua primeira e única mulher, falecida durante o parto.
O terceiro Velho é o Francisco Ferrim, antigo funcionário da CP, também já reformado que, segundo se conhece, nunca foi correspondido nos seus amores nem teve descendência.
Falam ao calhas sobre temas e títulos que dariam a um livro que escrevessem.
- Eu escrevia um livro chamado “O Nariz” – disse o Marreco, ao que o Brites Seco retorquiu. – Porquê?
- Porque imagino que os contrabandistas o tinham que ter apurado para cheirar os cabrões da Guarda Fiscal a léguas. – Responde o Marreco, acrescentando – Pelo menos os mais novos, que se mijavam de medo quando batiam as fronteiras durante a noite. – Remata com uma gargalhada.
- Bem, fique sabendo que já existe um livro com esse nome – corrige Brites Seco.
- Era o nariz era – diz Francisco Ferrim, remetendo-se ao silêncio, fitando o pelourinho no meio da Praça. – O nariz, a língua e tudo o resto. – diz, enigmático.
- Mas o amigo o que é que tem? Porque é que se pôs macambúzio? – Pergunta Brites Seco.
- Vou contar-vos uma história – diz o Francisco Ferrim. – Quando era novo, numa altura em que era marçano numa loja em Lisboa, que ardeu no grande fogo que destruiu o Chiado, apaixonei-me pela filha do dono.
Ainda hoje me lembro dela. Achava-a linda, apesar de ter o nariz adunco e um defeito na fala. Mas estava tão apaixonado que inventei explicações para esses pequenos defeitos. Imaginei que o nariz dela tinha sido obra de Deus, pois, ao criá-la, tinha o Altíssimo ficado tão apaixonado como eu, o que não ficava bem a um Deus monoteísta, austero e grave. A tal ponto que, lembrando-se dos tecelões de tapetes persas, que colocam propositadamente uma imperfeição em cada tapete, por crerem ser a perfeição uma qualidade exclusiva de Deus, este tinha colocado aquela na forma do nariz dela pois sem ela a mesma seria demasiado perfeita.
- És um conas – se calhar nem lhe disseste nada e andas a remoer isso aí dentro há anos – disse o Marreco.
- Um momento, caro amigo Aníbal, deixemos o Francisco falar sobre essa mágoa. Diz-se que alivia falar das nossas dores – disse Brites Seco. – Continue caro amigo Francisco.
- Não é verdade que não tenha feito nada. Mas já lá vou. Em relação à fala veio-me à cabeça a ideia que teria incarnado nela a alma da sacerdotiza dos homens e mulheres que se tinham lançado à empresa de contruir uma torre que chegasse ao Céu, a Torre de Babel. Como castigo, após confundir as línguas e inviabilizar a construção da Torre, teria Deus condenado todas aquelas em quem incarnasse o espírito da sacerdotiza a terem um defeito na fala.
Amo-te
Estou sentado defronte do abismo da folha em branco, esperando que algo surja e apenas me vem à cabeça a palavra Amo-te.
Tento afastá-la. Quem sabe que obras-primas poderia estar agora a escrever, se esta palavra não tivesse encontrado a corrente que leva até ao meu coração e não se tivesse aninhado, como um bebé recém-nascido, dentro de mim e teimasse em aqui permanecer.
Face a inquilino tão importuno e persistente decidi dar-lhe alguma atenção. Olho para ele, em pantufas, sentado numa poltrona e reparo que tem um ar velho e cansado. Parece um mendigo, com os seus sapatos, arrumados ao lado da poltrona, com ar de basto uso, suas calças rotas e o seu coçado casacão. Preto, neste caso. Faz-me pena vê-lo assim, sem ter algo para lhe oferecer que lhe aquecesse o coração, eu que também pouco possuo.
Chego-me a ele e cumprimento-o:
- Olá – digo eu, tentando parecer o mais caloroso possível, de modo a quebrar o gelo.
Ele, que, absorto, contempla o infinito, nem me responde.
- Olá, Amo-te, como é que vai isso?
Então, como se retornado do reino das névoas, imensamente escuro e opaco, vejo que repara em mim:
- Olá – diz ele – Tenho fome! Dás-me de comer?
- Infelizmente nada tenho para te dar que te alimente. Tenho apenas chá preto – digo eu. Foi tudo o que restou do vendaval dos últimos dias. Mas de bom grado te ofereço uma chávena de bom e quente chá preto. É o que se dá aos convalescentes, julgo.
- Pode ser – diz ele, com ar contrafeito – Se não há nada mais substancial terá então que ser chá preto.
- Óptimo – digo eu, enquanto espevito o fogo da lareira para ali aquecer a chaleira com água. – Vou utilizar um bule especial. Era da minha avó materna. Como tanto eu como a minha mãe somos filhos únicos calhou-me em herança. Tenho uma grande estima por ele. É feito de porcelana chinesa. Está na família há décadas.
- Hum! – murmura ele, não se mostrando grandemente interessado na história do meu bule.
Encho a chaleira com água e coloco-a na grelha da lareira, onde também costumo colocar as panelas e os tachos ao lume. Pergunto-lhe:
- Por onde andaste? Tens um ar cansado – digo eu, refreando-me de referir o seu ar de mendigo e as suas olheiras, fruto da fome e do cansaço.
– Andaste a correr mundo?
- Não. Fiquei sempre aqui por perto. Tenho andado escondido. Ando fugido dos Homens. – diz secamente.
- Mas porquê? Fizeram-te mal?
- Usam-me a despropósito e hipocritamente. Estou cansado de ser utilizado para manipular e enganar outros. Sei que sempre foi assim, mas a determinada altura fartei-me e escondi-me no bosque aqui perto. Tenho vivido do que almas bondosas me vão dando. Como agora – diz, esboçando um leve sorriso, sem mostrar os dentes.
- Se quiseres podes ficar, Amo-te. Amanhã vou às compras, hoje já está tudo fechado, e podemos comer os dois algo mais substancial que chá. – digo eu, ao mesmo tempo que se ouve o silvo da chaleira, sinal que a água já está pronta para o chá.
Pego na chaleira e verto água a ferver no bule, que previamente havia preparado com o chá.
- Agora é só esperar uns minutos, digo, contente, para o meu convidado.
Sem comentários:
Enviar um comentário